Em agenda oficial em Washington (EUA), na última terça-feira (11) a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, visitou a Suprema Corte dos Estados Unidos, onde foi recebida por Sonia Sotomayor (foto), uma das três mulheres que integram aquele tribunal, composto por nove juízes. Em seguida, Cármen Lúcia participou de reunião na Biblioteca do Congresso e de uma sessão de perguntas e respostas sobre direito internacional. No local, ela autografou livros de sua autoria que fazem parte do acervo da instituição.
Em palestra no Wilson Center, a ministra falou ontem sobre os desafios atuais do judiciário brasileiro. O evento faz parte de uma série de conferências promovidas pelo importante centro de estudos tratando de Estado de Direito e os desafios enfrentados pelo Brasil desde a promulgação da Constituição de 1988.
A ministra observou que a Constituição garantiu a institucionalização democrática no Brasil que, nesses quase 30 anos, já viu dois processos de impeachment de presidente da República serem realizados nos estritos termos da lei e com os poderes estatais atuando nos termos juridicamente previstos. Lembrou que as mudanças de governo ocorreram dentro da normalidade democrática, considerando as manifestações da sociedade e a atuação das instituições.
A presidente do STF salientou que a Constituição de 1988, promulgada depois de um regime autoritário, refletiu uma reação ao contexto anterior em várias normas, entre elas, a proibição expressa a qualquer forma de censura, o direito de acesso amplo e irrestrito ao judiciário, além do direito constitucional à informação plena e à transparência das instituições. Ressaltou que, naquele período, vivia-se sob a égide do constitucionalismo social, com a inclusão de direitos antes não abordados nas constituições, como o direito à saúde, ao meio ambiente, a uma família protegida pela sociedade e pelo Estado e ao cuidado com os direitos fundamentais de grupos vulneráveis.
Cármen Lúcia destacou que o processo constituinte na década de 1980 despertou a cidadania participativa no cidadão brasileiro, que foi às ruas para ser parte e partícipe do processo. Segundo ela, a Constituição, por cuidar de temas da vida cotidiana, passou a ser do interesse direto e permanente de todos que, pela primeira vez, buscaram conhecer seus direitos fundamentais.
A ministra salientou que a pluralidade de matérias definidas como constitucionais determinou uma experiência sócio-jurídica única na história brasileira, com os cidadãos procurando o judiciário cada vez mais, para resolver desde questões mais simples como para saber se é constitucional a interrupção da gravidez pela anencefalia do feto, por exemplo.
“Ninguém procura direito que não se conhece e nem se reconhece. O processo constituinte de 1987 e 1988 mudou o foco da cidadania nacional, que se reconheceu naquela dinâmica política. A efetividade social passou a ter lugar ao lado da efetividade jurídica buscada no Estado de Direito. Aprendeu-se que Constituição não é livro para ser deixado em prateleira, mas lei que se torna vida quando o que nela se contém se torna pleito e é atendido”, disse a presidente.
A ministra afirmou que a divulgação da Constituição de 1988, a primeira a ser de amplo conhecimento e divulgação para todos os cidadãos, modificou a cidadania e determinou novas formas de atuação da sociedade. Em sua opinião, a busca pelo direito e a confiança no judiciário abriu espaço para uma nova forma de ação cidadã, pois a transformação dos meios de comunicação entre as pessoas possibilita descobrir os vícios da representação política. “Embora seja certo que a atuação dos agentes públicos, ou dos agentes políticos, principalmente, não tenha mudado tanto quanto mudaram os cidadãos. O Estado é mais lento que a sociedade, mas em última instância, o Estado é determinado pela sociedade”, afirmou a presidente do STF.
Dificuldades institucionais
Após sua palestra, a ministra Cármen Lúcia respondeu a perguntas dos participantes do evento. Ao falar sobre dificuldades institucionais que existem no Brasil, a ministra citou o fato de o Poder Judiciário brasileiro ter, hoje, mais de 70 milhões de processos em andamento. Para a ministra, é necessário um aprimoramento dos mecanismos na gestão de processos, na forma de atuação dos juízes e também na forma de os magistrados conduzirem os processos e de se comunicarem com a sociedade, de modo que as pessoas entendam de onde vêm e para onde vão esses processos. O cidadão que hoje acorre ao judiciário quer não apenas ter acesso ao Poder Judiciário, no sentido de ingressar com ação, mas ele quer ter uma resposta e que seja executada. Quanto maior o número de processos, mais demorado, frisou a ministra. “A rapidez é um dos direitos constitucionais, também, do jurisdicionado”.
Se não houver uma mudança, as instituições que compõem o Judiciário chegarão a um gargalo, que é preciso ser resolvido. E o que acontece no Judiciário também acontece nos outros poderes. A demanda é sempre maior, salientou, lembrando a questão da reforma da previdência, que está em debate no momento. Caso não haja mudanças, haverá dificuldades institucionais, "não só entre as instituições, mas dentro de cada instituição em relação a um único objetivo do Estado, que é garantir um cidadão satisfeito com a sua realidade", afirmou.
Reforma política
Sobre decisões do Supremo Tribunal Federal na seara política, a ministra salientou que o Supremo não é legislador positivo. Disse que quando o Supremo analisou questões como financiamento de campanhas, fundo partidário, cláusula de barreira, espaço na TV, apenas interpretou a adequação das normas existentes à Constituição. Quando se fala em reforma política, essa mudança deverá ser feita no espaço político, que é o espaço apropriado para essa discussão.
Gastos com saúde
Questionada sobre “decisões trágicas”, como no caso da saúde, a ministra disse que esse é um dos problemas mais graves do judiciário. A ministra lembrou que quando iniciou sua gestão na Presidência do STF, reuniu-se com os 27 governadores dos estados. Na ocasião, revelou, o principal e primeiro pedido do colegiado foi o de que o Supremo resolvesse a questão dos gastos com saúde. Um dos governadores chegou a dizer que gastava, com 300 pessoas, que obtiveram decisões judiciais para receber tratamentos específicos, 18% do orçamento de saúde do estado, que tem 18 milhões de habitantes. Isto é uma escolha trágica, salientou a ministra, ressaltando que essa é uma questão que aflige o Brasil e outros países, como os EUA. O que o Judiciário faz nesses casos é garantir que aquilo que se comprove como imprescindível seja prestado.
A ministra disse que, nessa matéria, há seis meses, criou um Núcleo de Saúde, que conta com o apoio do Hospital Einstein, e que oferece uma plataforma com todos os medicamentos que são aceitos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Agora, o juiz brasileiro, em qualquer lugar do país, pode verificar se determinado medicamento receitado é realmente necessário. Isso evita que um médico possa indicar um medicamento que é mais caro, quando existe outro, com iguais condições, mais barato e aceito, e que o próprio SUS oferece.
Descriminalização do uso de drogas
Sobre a temática das drogas, a ministra frisou que a questão está em discussão no Supremo, especialmente quanto ao uso, que hoje não tem uma pena correspondente, mas continua sendo crime. “Essa é a tônica da discussão que se põe hoje no Brasil. E, para os juízes de execução penal, ou seja, aqueles casos em que já houve a condenação, o que se discute é se precisaria haver a prisão ou se aplicam-se medidas alternativas, já previstas na legislação brasileira, para evitar que a pessoa passe um tempo em um sistema extremamente perverso, como é o sistema carcerário brasileiro, e com as consequências que isso traz”.
Sistema penitenciário
A ministra também comentou sobre a diminuição das taxas de reincidência quando o preso passa por uma APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), e destacou que vai instalar, ainda em 2017, a primeira experiência de uma APAC para menores em conflito com a lei. “Isso ainda não existe, nunca foi tentado. Estamos tentando formular isso como novas possibilidades”.
A ministra disse entender que a sociedade, ao fechar as portas para o egresso do sistema penitenciário, estimula a volta ao crime. “É como se estivéssemos carimbando seres humanos para sempre. Ele cumpre, paga o que deve à sociedade, mas não consegue se ver livre dessa vida e, portanto, não consegue regressar. Acho que o trabalho deve ser com a sociedade, onde a mudança é muito mais grave e difícil, por ser uma mudança de mentalidade”.
Os juízes brasileiros estão se empenhando seriissimamente em convidar a sociedade a conversar sobre isso, ressaltou. “Se não mudarmos a sociedade, não adianta mudar só as leis. Temos no STF um projeto que se chama Começar de Novo, hoje com 78 egressos do sistema penitenciário participando da iniciativa. Determinei aos 90 tribunais brasileiros que adotassem o programa, para dar exemplo. Esse tipo de medida, no entanto, é a médio prazo. O que eu posso é lançar as âncoras e é isso que estou tentando fazer”.
Caixa dois
A ministra reafirmou seu entendimento de que Caixa 2 é um ilícito. “Há várias formas de se chegar a esse ilícito. Os modelos do que pode ter se passado de maneira invisível, do que obrigatoriamente tem que ser transparente para controle são inúmeros. O que sei é que ilícitos, em um estado democrático de direito, precisam se submeter integralmente à lei. Deve se dar apuração, processamento e conclusão, ou pela condenação ou pela absolvição”.
Whatsapp e marco civil da internet
A ministra explicou que o Brasil ainda não tem uma legislação completa para se saber qual é o marco normativo que estabelece as novas formas de comunicação de redes sociais. “A liberdade de expressão, para mim, é imprescindível. Quem não é livre nem para se manifestar não haverá de ser livre para pensar e, portanto, sem isso, não teremos nenhuma outra forma de liberdade. Porém, o mecanismo de exposição de ideias e as consequências das ideias expostas tem que ter mecanismos de controle. Um juiz é que não pode, sozinho, ser dono de todo esse marco normativo e, principalmente, tomar medidas que vão além de sua competência”.
American University
Na sequência de sua agenda em Washington (EUA), também nesta segunda-feira, a ministra Cármen Lúcia participou de evento na Faculdade de Direito da American University, onde falou sobre o momento brasileiro e também sobre a relevância do princípio da dignidade da pessoa humana. De acordo com ela, hoje, o brasileiro vive o paradoxo de ter direitos conquistados, mas, não poucas vezes, de efetivação dificultada no atual momento, pela cadência da dinâmica socioeconômica.
Como toda sociedade, frisou a ministra, o Brasil tem as suas dicções e contradições. “Afirma-se constitucionalmente a República, mas ainda lutamos para expulsar as obsoletas mas constantes práticas patrimonialistas em espaço público. O Brasil adota a ética constitucional e vive em luta constante contra a corrupção, que ainda continua a permear instituições”.
PR,MB,SP/EH