Intervenção
antes que o excesso vire vício permitiria convívio social com o álcool, dizem
especialistas
Aos 13 anos, Alice virou
três doses de pinga de uma vez, para parecer mais velha e descolada na frente
dos amigos. Não largou mais a muleta da bebida alcoólica. Aos 56
anos, Manoel bebeu quase três litros de cachaça após perder o emprego e
brigar com a mulher. Naquele porre, acredita, firmou o longo casamento com a
dependência química.
Ela tão nova, ele na meia-idade. Ambos exemplificam o
padrão nocivo de uso de álcool que acaba de ser detectado por uma pesquisa
financiada pela Organização Mundial de Saúde. O estudo, chamado Megacity –
feito nas Américas e na Europa – foi realizado no Brasil em parceria com o
Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP). Foram ouvidos
5.037 adultos da região metropolitana de São Paulo.
Álcool: nelas, consumo abusivo se concentra entre as mais jovens
Os recortes dos dados nacionais
sobre dependência de álcool em homens e mulheres foram antecipados com
exclusividade à imprensa e
revelam percursos diferentes do vício na comparação dos gêneros.
“Enquanto no sexo feminino o maior índice de uso abusivo e de
dependência de álcool está na faixa-etária mais jovem (até 24 anos), no recorte
masculino esta maioria apareceu mais tarde, após os45”, afirma Camila Magalhães
Silveira, autora do estudo no País e coordenadora do Centro de Informações
sobre Saúde e Álcool (Cisa).
A diferença, inesperada pelos pesquisadores, mostra uma mudança no
comportamento da população dependente, já que há duas décadas a maior parte dos
abusadores homens também era concentrada em uma fase mais precoce.
No passado, pontuam os especialistas, para cada cinco usuários
problemáticos de álcool existia uma mulher na mesma condição. Atualmente,
mostra o estudo, a razão comparativa é de 1 para 1. Elas já bebem tanto quanto
eles, mas concentradas em fases distintas.
Curvas
opostas
Alice, 23 anos, acumula mais de 120 meses de uso descontrolado “de toda
e qualquer coisa alcoólica”, está no grupo de 6% de mulheres que antes mesmo
dos 25 já apresentam problemas de saúde graves motivados pela bebida. O índice
é mais do que o dobro do identificado entre as com mais de 45 anos – nesta
parcela a taxa soma 2,9%.
No sexo masculino, entretanto, a curva é inversa. Os jovens com menos de
25 anos que apresentam as sequelas do consumo exagerado de cerveja, destilados
e vinho somam 11,1%, contra 27,6% entre os que já completaram ou passaram dos
45 aniversários (16,5 pontos porcentuais a mais).
Em encontro recente com a reportagem, Manoel conta que sempre bebeu, mas
só perdeu o controle “quando tinha família e era pra lá de maduro”. Hoje ele
tem 63 anos.
A grande diferença entre as faixas etárias de homens e mulheres nas
estatísticas de uso problemático de álcool tem algumas hipóteses.
A primeira explicação é fisiológica, e por si só um fator preocupante,
aponta a psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
especializada em drogas, Alessandra Dihel.
“A estrutura hormonal delas é mais vulnerável ao álcool, o que faz com
que seja mais precoce nelas a fragilidade diante do consumo de álcool. Para ter
os mesmos danos que eles, as jovens precisam beber bem menos e por bem menos
tempo.”
Outro fator apontado pela psicóloga especialista em dependência química
da clínica Maia, Adriana Talarico, é o gatilho para a utilização nociva de
álcool.
“No discurso dos homens, a motivação são as frustrações ao longo da
vida, um declínio profissional e na produtividade, eles passam a se considerar
um fardo à família, questionar as próprias conquistas”, pontua.
“Elas, por sua vez, falam da pressão para começar a vivência. A
aceitação no grupo, no mercado de trabalho e também para lidar com as obrigações
múltiplas que surgem desde muito cedo.”
A autora do estudo Megacity, Camila Siqueira, traz à tona outra questão:
o foco da prevenção.
“É mais recente a aceitação social do uso do álcool pelas mulheres.
Antes, elas não bebiam. Com isso, o foco das campanhas preventivas ficou muito
centrado nos homens. As mulheres ficaram negligenciadas desta abordagem. Raros
são os ginecologistas, por exemplo, que questionam se as suas pacientes bebem,
fumam ou usam outras drogas.”
Perdas
e ganhos
De acordo com as pesquisadoras
ouvidas pela reportagem, quanto mais rápido forem feitas intervenções para
evitar o comportamento abusivo, maior é a chance da pessoa afetada de mudar o
curso da dependência etílica que pode comprometer o fígado, os pulmões, o coração, a
fertilidade, além de aprisionar o usuário aos quadros de compulsão e depressão.
Neste sentido, a pesquisa Megacity foi pioneira também em mapear não
apenas os dependentes de álcool, mas os que estão na categoria “abusadores”,
fase anterior ao vício propriamente dito.
“Os usuários abusivos, por exemplo, já podem ter alterações em alguns
exames clínicos provocados pela bebida, podem ter faltado muitos dias no
trabalho devido à ressaca ou mudado os planos de vida por causa do álcool. Mas
eles não sofrem de abstinência ou compulsão, duas características essenciais
nos dependentes químicos”, explica Camila.
Se tiverem acesso ao acompanhamento terapêutico na fase de abuso – antes
da transição para a dependência – estas pessoas podem até ser submetidas a um
novo paradigma de tratamento para o álcool: uma relação saudável com o álcool,
na qual o consumo não é totalmente banido da vida social.
“Os dependentes nunca mais podem beber, não é indicado nenhum gole. O
consumo é zero. Já os abusadores, em alguns casos, podem voltar a beber
socialmente”, diz a pesquisadora, lembrando que alguns chegam à etapa da
dependência sem passar pelo abuso e alguns abusadores nem chegam à categoria
dependente, apesar de sofrer problemas de saúde decorrentes do uso frequente da
bebida.
Segundo a pesquisa, dos 6% de mulheres entre 18 e 24 anos que apresentam
problemas com o álcool, 5,4% estão no padrão “abuso” e 0,6% no “dependentes”.
Dos 27,6% de homens entre 45 e 54 anos computados no uso nocivo, 17,6% são
abusadores e 10% estão na fase da dependência etílica.
Alice e Manuel fazem parte do segundo grupo e jamais poderão voltar a
beber. Para ambos, as diferentes etapas da vida estão traçando rumo distintos à
estrada da recuperação. Ela foca nas coisas que deixou de viver por causa do
álcool.
“Nunca dancei uma música sem estar bêbada, não consegui terminar nenhuma
faculdade, não tenho um livro de preferência porque também não consegui
concentração para ler”.
Manoel, por sua vez, olha para o que deixou no caminho. “Meu filho, meu
emprego, minha dignidade, minha casa, minhas conquistas, tudo ficou perdido.”
Felizmente, a disposição para seguir é compartilhada pelos dois. Alice
quer saborear tudo que ainda está por vir. Manoel relembrar o gosto das
vitórias que já teve.
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